sábado, 30 de julho de 2011

Carl Sagan: Um Universo que não foi feito para nós (legendado)


Se isso nos desagrada, teremos nós mesmos de usar nossas melhores ferramentas para redesenhá-lo no que for possível... Não tampar os olhos com as mãos, como os bebês que acreditam que, fazendo isto, não estão sendo vistos por mais ninguém.

Ricardo Oliveira da Silva: "A palavra 'impossível' só existe para a gente desmoralizá-la"



Já faz alguns anos que assisti à notícia sobre a vitória de Ricardo de Oliveira da Silva em um noticiário de TV. Acho que foi quando ele ganhou a primeira medalha. Quase nunca assisto  à televisão, mas aquele dia realmente valeu a pena. Sabe aquelas histórias que enchem os olhos d'água? Que dão um arrepio? Inspiram? Pois bem, a história de Ricardo Oliveira da Silva pertence a esta categoria. É uma daquelas pessoas que tem uma história de vida tão bonita que servem de símbolo para todos nós. Portador de atrofia de tecido muscular, doença que o tornou deficiente físico, só pode começar a frequentar a escola aos 17 anos. E, ainda assim, só uma vez por semana: a professora tinha que ir a sua casa para lhe ensinar as lições. Mas, quando chegava lá, ela percebia que seu aluno já se adiantava nas matérias. Uma mente privilegiada: "Eu começava sempre devagar e ia superando os os obstáculos um a um pra poder chegar longe".

Para fazer as provas, seu pai o transportava em um carrinho de construção por mais de 1km. Não obstante todos esses obstáculos, Ricardo venceu por três vezes a Olímpiada Brasileira de Matemática. Segundo ele, "a palavra 'impossível' só existe para gente desmoralizá-la." E, lembrando uma música famosa do Mont Python, disse que: "na vida tudo tem dois lados e você não vai fazer nada se só ficar olhando o lado ruim." 

Ricardo com o então Presidente Lula, em uma bonita e merecida homenagem.

Disse ainda ao então Presidente Lula que "hoje o Brasil está me ajudando; amanhã, quem sabe, eu poderei ajudar o Brasil." O Brasil ajudando ele? Humm... dificilmente. Provavelmente a Inglaterra ajudou e está ajudando Steven Hawking, mas tenho dificuldade em enxergar como o Brasil está ajudando o Ricardo e outras crianças talentosas brasileiras pobres.  Por outro lado o Ricardo, só com sua história, já está ajudando o Brasil: é um motivo de inspiração para desafiarmos nossos limites!


Meio de transporte para ir fazer provas: 1km no carrinho de mão de construção civil, puxado pelo pai.

Estou convencido de que com o domínio dos processos informacionais dos sistemas biológicos, a biotecnologia/bioinformática poderá trazer transformações no mundo tão profundas como aquelas realizadas pela ciência da computação/informática (será que na década de 1940, as pessoas imaginavam como a tecnologia da informação iria interferir em nossas vidas?). Se isso se tornar realidade nas próximas décadas, então ainda poderemos ver Ricardo Oliveira da Silva em uma corrida vespertina, quem sabe em um arbóreo campus da universidade em que tiver se tornado professor (não sei se isto está nos planos dele, mas ciência no Brasil praticamente só em universidades públicas mesmo). 

A história de Ricardo já nos inspira. Espero poder ver, ainda, seus trabalhos nos ajudarem a desmoralizar muitas e muitas vezes a palavra "impossível" e tornar trivial o que hoje parece fabuloso. 
Fontes:

Sonhando acordado

"Todos os homens sonham: mas não do mesmo jeito. Aqueles que sonham de noite nos recessos empoeirados de suas mentes acordam no dia seguinte para descobrir que seus sonhos eram vaidades: mas aqueles que sonham de dia são homens perigosos, pois podem atuar em seus sonhos com os olhos abertos para torná-los realidade. "
 
"All men dream: but not equally. Those who dream by night in the dusty recesses of their minds wake in the day to find that it was vanity: but the dreamers of the day are dangerous men, for they may act their dream with open eyes to make it possible."
T. E. Lawrence

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Comentários divertidos do Clube Cético sobre Ray Kurzweil



Um tópico curto, meio antigo, inteligente e extremamente divertido no fórum do Clube Cético, comentando uma entrevista de Raymond Kurzweil:

http://clubecetico.org/forum/index.php?topic=8812.0


Trecho engraçado em que um dos foristas, Bruno, manifesta seu incômodo a respeito da possibilidade de o ser humano se fundir com as máquinas ou inteligência artificial (um incômodo, aliás, que realmente deve ser levado a sério e refletido):

"Bruno: Não sei, me sinto incomodado com essa fuga da natureza...
Dr. Manhattan: Isso também foi o que Ugh disse, quando Ogh fez a primeira fogueira...

Bruno: Vai ver ugh era muito mais feliz do que o josé, nascido 20 mil anos mais tarde. ele e suas gazelas.
Dr. Manhattan: Não se ele fosse diabético. Ou se precisasse ir ao dentista. Ou se tivesse uma crise de apendicite, ou..."


Este outro tópico também é interessante:

http://clubecetico.org/forum/index.php?topic=7761.0

Um robô que voa como um pássaro no TED

Quem ainda não se viciou nas palestras do TED deve tomar cuidado com o vídeo abaixo (vale a pena assistir, mesmo que você não entenda inglês):

domingo, 10 de julho de 2011

Khan Academy: começaram as legendas em português do Brasil

(atualizado em 13/02/2012, veja abaixo)

Excelente notícia! Começaram aparecer as legendas em português na Khan Academy!

Não sei quando começaram (provavelmente há algum tempo), mas neste fim de semana eu estava apresentando a Khan Academy para alguém especial quando me dei conta de que muitos dos vídeos iniciais de matemática já estão com legenda em português. 

Para facilitar a vida de quem não tem intimidade com a Khan Academy, fiz a imagem abaixo, onde mostro em 03 passos como colocar as legendas em português. Lembrar que, para fazer login na Khan, você precisa de uma conta do Google ou no Facebook.

Como adicionar legenda em português na Khan Academy em 03 passos.

Uma sugestão: não se deixe intimidar com a lingua inglesa. Aproveite a oportunidade de estudar pela Khan Academy para aprender ou melhorar seu conhecimento na língua. Um bom recurso para isso é usar o tradutor do Google


Quem quiser ajudar a traduzir as legendas, como voluntário, encontra uma explicação aqui:

https://sites.google.com/a/khanacademy.org/forge/for-translators/reference-page 

Torne-se um tradutor colaborador fazendo sua aplicação nesta página: 'Contribute'.

***ATUALIZAÇÃO***
(13/02/2012)
Além das legendas embutidas nos vídeos da Khan Academy, A Fundação Lemann (www.fundacaolemann.org.br/khanportugues), em parceria com o Instituto Península e o Instituto Natura (mais uma iniciativa arrojada do empresário Guilherme Leal) começou a dublar os vídeos da Khan Academy, com dublagem profissional. E a boa notícia fica ainda melhor: assim como na Califórnia e em outros lugares dos EUA, o projeto da Fundação Lemann e seus parceiros pretende levar a Khan Academy para dentro das escolas, em um experimento para tentar aprimorar a educação (mais informações: http://www.fundacaolemann.org.br/khanportugues/nas-escolas.php). Parabéns à Fundação Lemann, ao Instituto Natura e ao Instituto Península pela iniciativa: isso é filantropia de grande alavancagem!

Lembre-se: além os vídeos, a Khan Academy abrange exercícios (com revisões agendadas) e estatísticas detalhadas sobre o aprendizado (veja o vídeo de Salman Khan no TED para entender melhor isso: http://www.ted.com/talks/lang/pt-br/salman_khan_let_s_use_video_to_reinvent_education.html).

Veja abaixo alguns vídeos da Khan Academy já dublados (veja a lista completa: 


Primeira Lei de Newton:


Números primos:
 

Introdução à seleção natural:

Sam Harris: ciência versus religião

Ontem assisti à fala de Sam Harris no BigThink. Achei excepcionalmente boa! 



A palestra é dividida em pequenos trechos e acho que todos podem ser encontrados legendados no youtube. Vale a pena repassar e divulgar. Eis alguns trechos:



(clique e vá ao site do youtube para ver as legendas)

Dentre os argumentos de Harris, encontrei exatamente o argumento que me levou a perder a fé na bíblia e em qualquer religião, há muitos anos atrás:



Fiz algumas críticas à Revista Veja aqui, mas a revista merece elogios pelo espaço que dá à cobertura do secularismo. Confira-se, por exemplo, as excelentes entrevistas abaixo:

A religião faz mal ao mundo
Não acreditar em Deus é um atalho para a felicidade

Trecho de uma das entrevistas:

Revista Veja: O senhor acha que o mundo seria melhor sem religião, sem fé, sem crença em Deus?
Sam Harris: Seria melhor se não houvesse mentiras. A religião é construída, e num grau notável, sobre mentiras. Não me refiro aos espetáculos de hipocrisia, como quando um pastor evangélico é flagrado com um garoto de programa ou metanfetamina, ou ambos. Refiro-me à falência sistemática da maioria dos crentes em admitir que as alegações básicas para sua fé são profundamente suspeitas. É mamãe dizendo que vovó morreu e foi para o céu, mas mamãe não sabe. A verdade é que mamãe está mentindo, para si própria e para seus filhos, e a maioria de nós encara tal comportamento como se fosse perfeitamente normal. Em vez de ensinarmos as crianças a lidar com o sofrimento e ser felizes apesar da realidade da morte, optamos por alimentar seu poder de se iludir e se enganar.


***

Onde não concordo com Harris: que todos podem ser seculares como ele. Há questões sociológicas, biográficas e talvez até neurobiológicas (diferença de perfis neurobiológicos) envolvidos aí. Uma coisa é você crescer em uma família secular e ser filósofo e neurocientista por Stanford e fazer do debate de ideias seu meio de vida. E, além disso, ter um certo "perfil neurobiológico", vamos chamar assim. Outra coisa é você nascer em uma família religiosa, passar a vida realizando outros tipos de trabalhos (acho que não seria uma maluquice levantar a hipótese de que na era industrial pensar demais pode até atrapalhar o desempenho em certos trabalhos) e não ter o mesmo "perfil neurobiológico". O trabalho de Harris tem valor? Na minha opinião tem e muito! Mas há mais de século a religião é amplamente atacada e isso não acabou com ela. Na minha opinião, precisamos de alternativas. Por exemplo, aquela de que cuida deste blog: cultivar projetos de engenharia semelhantes a alguns dos melhores contos de fadas da religião, mas conscientes de sua natureza: é um sonho, um ideal, uma possibilidade, o melhor que temos a nossa disposição com os recursos que temos (inclusive com a honestidade).

Para encontrar livros de Sam Harris:
http://www.estantevirtual.com.br/mod_perl/busca.cgi?pchave=Sam+Harris&alvo=autor+ou+titulo

Vê se a Rainha ri disso!

No último post tentava argumentar que o mal-estar em relação à morte e outros aspectos negativos da condição humana não é exclusividade transhumanista. O segundo exemplo com que gostaria de ilustrar este traço humano pan-cultural da consciência (e desejo de transcendência) de aspectos negativos da condição humana pode ser encontrado em Hamlet, de Shakespeare, e em vários escritores do renascimento ou do barroco.

Vejamos, de início, a visão de Shakespeare (ou pelo menos de Hamlet) do mundo:

“Como são enfadonhas, azedas ou rançosas,
Todas as práticas do mundo!
Ó tédio, ó nojo! Isto é um jardim abandonado,
Cheio de ervas daninhas,
Invadido só pelo veneno e o espinho –
Um quintal de aberrações da natureza.” (Hamlet, I, 2)

Ou, ainda, falando da terra e do ar:

“o ar, olhem só, o esplêndido firmamento sobre nós, majestoso teto incrustado com chispas de fogo dourado, ah, para mim é apenas uma aglomeração de vapores fétidos, pestilentos. Que obra-prima é o homem! (...) Contudo, para mim, é apenas a quintessência do pó.”

Em uma cena famosa de Hamlet, que se passa em um cemitério, depois de refletir sobre a fragilidade da vida humana e da decomposição de corpos que outrora foram pessoas, Hamlet toma em suas mãos o crânio do falecido bobo da corte, Yorick, e indaga a caveira descarnada:

“Yorick, onde andam agora as tuas piadas? Tuas cambalhotas? Tuas cantigas? Teus lampejos de alegria que faziam a mesa explodir em gargalhadas? Nem uma gracinha mais, zombando da tua própria dentadura? Que falta de espírito! Olha, vai até o quarto da Rainha e diz a ela que, mesmo que se pinte com dois dedos de espessura, este é o resultado final; vê se ela ri disso!” (V, 2)

Hamlet para a caveira do bobo da corte: “Olha, vai até o quarto da Rainha e diz a ela que, mesmo que se pinte com dois dedos de espessura, este é o resultado final; vê se ela ri disso!”


Essa consciência da fragilidade e da nulificação do sentido da vida pela consciência da morte pode ser encontrada até em autores do outro lado do Atlântico, como Gregório de Matos:


“Nasce o Sol e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tritezas, a alegria.
Porém, se acaba o Sol, por que nascia?
Se é tão formosa a Luz, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?
Mas no Sol, e na Luz falta a firmesa,
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se a triteza,
Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza.
A firmeza somente na incostância.”
(Gregório de Matos em “Inconstancia das coisas do mundo”)


Mas um importante detalhe deve ser observado: em muitas destas críticas (como no caso de Gregório de Matos), as evocações eloquentes dos aspectos negativos da existência humana não eram tão deprimentes quanto à primeira vista podiam parecer. A ênfase nos aspectos negativos da existência mundana se fazia em contraste com outra existência superior e perfeita, tomada por garantida: a espiritual. Assim, por mais que se atacasse a existência material como fútil ou fétida, essa crítica servia para dourar, pelo contraste, o ouro espiritual.

É interessante, ainda, notar que mesmo visões otimistas da vida terrena, como a dos filósofos iluministas e sua crença inabalável na ciência como instrumento do progresso e bem-estar humanos, pressupunham a existência de Deus (deísmo) e da imortalidade da alma. Na verdade, essa crença era a base de vários sistemas filosóficos e científicos, como o de Descartes e Newton.  Newton era envolvido em várias atividades místicas, como a alquimia e tinha crenças improváveis, como a de que pertencia a uma sociedade secreta que remontava à época de Pitágoras. Descartes inventariou uma série de raciocínios céticos em suas meditações, levando a dúvida até as últimas consequências como uma tentativa de refutar as dúvidas e afirmar a certeza de verdades como a existência de Deus e a imortalidade da alma. Mas o mesmo espírito crítico e cético que sepultara as superstições e a autoridade da Igreja se desenvolveria a tal ponto de também derrubar estas certezas iluministas, certezas estas responsáveis pela elegância de seus sistemas filosóficos e pela visão de mundo e da condição humana otimistas que irradiava do "século das luzes".

A consequência desses desdobramentos é que chegamos ao ponto em que temos a mesma consciência de sempre dos aspectos negativos da condição humana, porém, agora -- exceto para os crentes e supersticiosos --, não temos a menor perspectiva das glórias douradas da vida espiritual: tanto para os bons quanto para os maus, o destino final é a extinção com a morte: “bons ou maus, belos ou feios, ricos ou pobres, todos são iguais agora”, reduzidos ao nada. Se adicionarmos a isso  toda destruição e sofrimento detonada no século XX, chegamos a um panorama nada auspicioso para a humanidade, um engolfamento existencial. Uma situação que parece pendular de um lado, para os roteiros ingênuos de faz-de-conta da religião (seja em suas versões mais brutas e tradicionais, seja nas modalidades mais lights e espiritualizadas). De outro lado, temos a aceitação da realidade árida como ela é, o contentamento em viver a vida em sua miséria ordinária, com pequenas vávulas de escape no álcool, no sexo e na diversão.

Sem necessariamente abrir mão de todas as "válvulas de escape", vejo o transhumanismo como uma forma de contornar este estado de coisas. Por um lado, não se nega a dureza e aspereza da realidade, nem se tenta maquiá-la com mitos (não, não há nada que sustente a ideia de que Deus exista ou nos ouve e, principalmente, não há qualquer indício de existência após a morte, a não ser a mistura humana de medo e imaginação). Por outro lado,  não se conformar com as coisas como elas são: propõe-se usar a engenhosidade humana para aproximar a realidade dos sonhos acalentados pela humanidade desde épocas imemoriais. Sonhos que, tomados como realidade pelas religiões, serviram como sedativos até os dias de hoje. Nesse aspecto estou de acordo com Kurzweil quando ele diz que não é mera coincidência que várias de suas ideias parecem ter ressonância com as ideias religiosas: é que tais ideias refletem os objetivos da humanidade.

Mas nessa difícil jornada de luta e afirmação da vida, de busca por mais vida, é preciso ter cautela e distinguir os fatos dos projetos ou separar os fatos das especulações. Por um lado, celebrar e antever a concretização de objetivos fabulosos nos inspira e nos ajuda a manter a motivação e potencializar a ação. Por outro, é preciso ter em mente que só se pode alterar a realidade com um conhecimento objetivo e preciso dela. Distorcer os fatos movidos por um desejo de enxergar fontes  de água fresca e tamareiras onde há apenas areia quente significaria sair de uma fria (o delírio religioso) para entrar em uma fria ainda maior (um delírio tecnicamente requintado, mais difícil de ser denunciado). E é por isso que defendo que, independentemente da possibilidade de realização de qualquer proposta particular que povoe o ideário transhumanista (criogenia, upload da mente, imortalidade física, singularidade, nanotecnologia capaz de fabricar quaisquer materiais etc.), o que importa é o método: o de usar a tecnociência para moldar a realidade. Essa é, a meu ver, a única conciliação possível entre ciência e religião: transformar os melhores sonhos desta em projetos daquela.

sábado, 2 de julho de 2011

Raul Seixas, um transhumanista?

Publiquei aqui há algum tempo a tradução de um artigo de James Thomas, em que ele enxergava vários elementos comuns entre a filosofia de Schopenhauer e o transhumanismo. Mais especificamente, este elemento: a consciência dos aspectos negativos da condição humana e, ao mesmo tempo, a crença em uma saída terrena para superá-los. Nas palavras de Thomas:
“A filosofia de Schopenhauer mistura Platão, Kant e os Upanishads hindus para criar uma visão de mundo que consegue ser atraente e deprimente: a existência é sofrimento. É uma pancadaria infindável de dor e tédio, aliada a um esforço constante para o que não pode ser atingido. E ainda assim, há escapatória. Os seres humanos podem executar obras de arte e perder-se na arte da música, no jogo, ou na criação.”

Para Schopenhauer, a saída seria a  contemplação intemporal de uma realidade mais elevada, como a arte ou projetos intelectuais. Para os transhumanistas, além de possíveis saídas psicológicas, a solução definitiva envolveria mesmo redesenhar mentes e corpos humanos.

Críticos argumentam que este traço do transhumanismo revela um desprezo pelo corpo, uma obcessão com a perfeição e juventude e um medo irracional (?!) envolvendo a morte (Borgo). Transhumanistas rebatem dizendo que o desejo de recuperar a juventude, especificamente, e transcender as limitações naturais do corpo humano, em geral, é um fenômno pan-cultural e histórico, isto é, visível em todos os lugares, em todas as épocas (Bostron).
E, neste post e no seguinte, vou tentar argumentar com um exemplo a universalidade destas ideias. Tentarei trazer outros exemplos em um futuro post.

Ouro de Tolo
Há algum tempo ouvi a música “Ouro de Tolo” de Raul Seixas e me dei conta de que ela também possui os mesmos elementos a que James Thomas se referiu como transhumanistas. Vamos a um trecho da música (clip dela aqui):




“Eu devia estar feliz pelo Senhor ter me concedido o domingo
Prá ir com a família no Jardim Zoológico dar pipoca aos macacos...
Ah! Mas que sujeito chato sou eu que não acha nada engraçado
Macaco, praia, carro Jornal, tobogã, eu acho tudo isso um saco...
É você olhar no espelho e se sentir um grandessíssimo idiota
Saber que é humano, ridículo, limitado 
Que só usa dez por cento de sua cabeça animal...
E você ainda acredita que é um doutor, padre ou policial
Que está contribuindo com sua parte para o nosso belo quadro social...
Eu que não me sento no trono de um apartamento
Com a boca escancarada, cheia de dentes
Esperando a morte chegar...
Porque longe das cercas embandeiradas que separam quintais
No cume calmo do meu olho que vê
Assenta a sombra sonora de um disco voador...” (Raul Seixas, Ouro de Tolo)
Temos aí a ideia da futilidade das práticas sociais, a consciência das limitações humanas e da morte e, não obstante, uma remota possibilidade de escapatória desta sensação de “claustrofobia existencial” pela imaginação ou pela interação com discos voadores (o mito secular do século XX).  

O famoso psicólogo Karl Gustav Jung considerava que os fenômenos UFO eram uma espécie de mito moderno, um mito com temas mais racionais (os ETs são seres vivos materiais, viajam em veículos voadores produtos de uma engenharia superior etc.), porém surgido da mesma necessidade humana de colocar algo no lugar dos erodidos mitos religiosos.

A diferença radical em relação ao transhumanismo? O plano destes é efetivar pela ciência uma alteração da própria condição humana, isto é, uma transcendência material que visa tornar o material mais próximo dos sonhos de beleza e bem-estar cultivados pela humanidade no plano da imaginação (como a ideia de paraíso, presente em todas as religiões). Já artistas como Raul Seixas procuravam a escapatória “queimando a vela dos dois lados” com as drogas e/ou com formas estranhas de experiências religiosas, como o ocultismo (isto é, uma mistura de mito e experiências com o inconsciente), que às vezes envolvia elementos de ufologia.

Isso pode ser tema de uma reflexão futura entre as semelhanças (que são várias) entre a ufologia e o singularitarianismo. Desde já antecipo minha opinião: a de que, idenpendentemente da concretização de cada hipótese em particular (tais como a singularidade, o "upload" da consciência etc.), o projeto transhumanista, no conjunto, é o que tem valor. É como a ciência: as hipóteses e teorias científicas mal surgem e são derrubadas, mas o método científico é o motor perene que gera o conhecimento. Em relação ao transhumanismo, a mesma lógica se aplica: sendo ou não viável uma ou outra ideia (muitas se mostrarão inadequadas), o método de buscar objetivamente alterar a realidade em direção a uma potencialização do bem-estar humano é o que importa.